BLOG CARLOS RIBEIRO ARTES

terça-feira, 29 de maio de 2012

COLUNA DA REVISTA O GLOBO

Palma de Ouro


Em 1962, não era de conhecimento comum o sincretismo religioso que dominava a Bahia. Nem todo o Brasil sabia que Iansã e Santa Bárbara eram a mesma divindade. A gente não tratava com muita intimidade o berimbau e não tinha muita noção do que fazia um capoeirista. Talvez por isso “O pagador de promessas”, o filme de Anselmo Duarte, tenha sido tão surpreendente. É verdade que aquela história e os elementos que a compunham já tinham aparecido no teatro, três anos antes, na peça de Dias Gomes que deu origem à produção cinematográfica. Mas cinema, mesmo o de 50 anos atrás, atinge uma plateia muito superior que a do teatro. Pelo menos o cinema de sucesso. E “O pagador de promessas” foi um retumbante sucesso.

Visto hoje, o filme é tão atual que chega a causar espanto o fato de não ser mais celebrado. Mesmo no momento em que ele completa 50 anos. Na saga de Zé do Burro para cumprir sua promessa discutem-se com veemência a intolerância religiosa, a ética na imprensa, as diferenças do Brasil urbano e do Brasil rural, com argumentos que poderiam ser usados ainda hoje. “O pagador de promessas” é o mais cinemanovista dos filmes que não fizeram parte do Cinema Novo. E, para desgosto de muitos líderes do movimento, ainda é o único filme brasileiro que, nas 65 edições do Festival de Cannes, ganhou uma Palma de Ouro. Muitos cinemanovistas chegaram perto, mas só Anselmo Duarte levou.

Dizem que a sessão principal do filme não teve uma plateia muito grande. Os convidados do festival preferiram assistir a “Divórcio à italiana”, de Pietro Germi, que foi exibido no mesmo horário. Germi era apenas um dos destaques do grupo de cineastas que concorria à Palma naquele ano. Foi mesmo um ano extraordinário para Cannes. Para ganhar a Palma, era preciso vencer “Electra”, de Mi- chael Cacoyannis, “O processo de Joana d’Arc”, de Robert Bresson, “Um gosto de mel”, de Tony Richardson, “Os inocentes”, de Jack Clayton, “O anjo exterminador”, de Luis Buñuel, “Cleo de 5 às 7”, de Agnès Varda, “O eclipse”, de Michelangelo Antonioni, “Tempestade sobre Washington”, de Otto Preminger, “Anjo violento”, de John Frankenheimer, “Longa jornada noite adentro”, de Sidney Lumet, além da comédia de Germi. “O pagador...” era mesmo um azarão.

A lenda diz que o júri se dividiu entre “O eclipse” e “O anjo exterminador”, e que foi François Truffaut, um dos jurados, quem veio com a ideia de se premiar, então, uma terceira opção, um filme do emergente cinema do Terceiro Mundo. Pode ser. Mas não se pode negar também que “O pagador...” foi muito bem recebido, teve ótimas críticas e que todo mundo achou justo o resultado.

Eu me lembro muito bem do clima de Copa do Mundo que cercou o país com a chegada da equipe do filme. Não éramos bons só no futebol. Fazíamos bom cinema também. Ninguém podia segurar este país. Da noite para o dia, Leonardo Villar, Glória Menezes, Norma Bengell, Geraldo Del Rey viraram ídolos populares. Anselmo Duarte já era conhecidíssimo como o maior galã das chanchadas.

Cinquenta anos depois, “O pagador de promessas” continua sendo nossa única Palma de Ouro. E continua sendo um ótimo filme.

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