Latas recheadas de maconha que boiavam em Ipanema em 1987 eram disputadas por banhistas
RIO - A memória de quem — de fato — viveu aquilo pode ser lá meio fraca. Mas, sim, houve uma vez um verão em que milhares de latas, cada uma recheada com pouco mais de um quilo de maconha, apareceram boiando no litoral entre o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul.
Quem se dispõe a recontar a história é o jornalista Wilson Aquino, no livro "Verão da Lata", cujo lançamento será no dia 31, na Livraria da Travessa de Ipanema. E também o diretor Tocha Alves, no documentário para TV igualmente intitulado "Verão da Lata", que ele está acabando de filmar e que pretende exibir em janeiro.
E a história foi a seguinte: em agosto de 1987, suspeitando estarem sendo monitorados pela agência de combate às drogas dos Estados Unidos (a DEA), os tripulantes do navio panamenho Solana Star jogaram ao mar sua carga: cerca de 15 mil latas de maconha. A Polícia Federal brasileira, que recebera informações sobre a embarcação, só chegou a ela em setembro, quando estava ancorada no Rio e, da tripulação, só restara na cidade o cozinheiro. Dias depois, as latas apareciam nas praias. Quem as achava e as abria levava um susto. E tinha que tomar a decisão: entregar à polícia ou guardar — e torcer para que outras aparecessem.
— As pessoas que ficavam com as latas tinham duas reações — conta Aquino. — A primeira era de euforia, pensando em vendê-las, em reparti-las com os amigos. Depois, era o medo. O país estava recém-saído da ditadura, e o usuário recebia da polícia um tratamento duro. Além disso, era vexame ser preso com droga.
Isso, porém, não conseguiu evitar que apreciadores da erva se mobilizassem em verdadeiras pescarias. E que um homem chegasse a ser flagrado (e preso) com nada menos do que 344 latas.
— Os mais novos com quem eu conversava achavam que era lenda urbana, que não tinha acontecido de verdade — diz Aquino, que, na pesquisa para o livro, teve acesso ao processo e a documentos até então não divulgados.
— Aquilo foi uma piada do destino — define o poeta Chacal, um dos cronistas daquele verão de 1987-1988 em que as latas chegaram às praias. — Era tão inacreditável que parecia que a realidade tinha dado um banho na ficção. Gerou piadas e músicas. Inclusive, um samba do Suvaco.
Música, artes plásticas, gírias
Inspirado naquele verão, Chacal fez o poema "A lata" ("Da lata/ Sai o gênio da fumaça/ Que do mar veio para a areia"), que recitaria, anos mais tarde, no disco "Da lata" (1995), de Fernanda Abreu.
— Só numa cidade como o Rio de Janeiro uma situação dessas, que podia ser encarada como calamidade, virou humor — analisa hoje Fernanda. — Aquelas latas reverberaram na música, nas artes plásticas, nas gírias... Em pouco tempo, tudo que era bom era "da lata". A lata lavou a alma.
A cantora é uma das entrevistadas "do lado pop" (junto com Lobão e Fausto Fawcett) por Tocha Alves para seu documentário sobre o Verão da Lata. Além dos artistas, o diretor conversou com os envolvidos na questão policial e com gente que ainda tem latas — vazias de erva, mas recheadas de causos mirabolantes.
— Vejo o Verão da Lata como o último suspiro hippie na pós-ditadura — conta Tocha, que já filmou três reconstituições do que poderia ter acontecido no mar, em 1987, com a carga do Solana Star.
O "lado pop" também marca presença no livro de Wilson Aquino num depoimento do roqueiro Serguei (que participou de uma pescaria de latas em Saquarema), numa HQ do personagem Capitão Presença e num conto do site Molusconto.com.
Mesmo assim, quase 25 anos depois, algumas lendas permanecem. Como a de uma socialite que teria pedido aplausos para a erva da lata, considerada de ótima qualidade, por ter forçado um aumento no padrão do produto oferecido pelo tráfico carioca. E ainda há a incerteza de que havia apenas 22 toneladas de maconha nos porões do Solana Star.
— A capacidade de armazenamento do navio era bem superior a isso — diz Aquino.
Apreendidas, de fato, pela Polícia Federal, foram apenas 2.563 latas. Mais algumas poucas, pelas polícias estaduais. O cálculo é que apenas de 20% e 30% tenham sido recuperadas pela lei. O resto? Foi-se na fumaça do tempo.
Fonte: O Globo/Cultura
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