Uma praça e uma missão
O estudante e os três boêmios
Um jovem. Um ofício. Uma missão.
É a partir desse conjunto que eu vejo Carlos Augusto, mais conhecido como Guto. Um jovem cursando a faculdade de Arquitetura e Urbanismo que, através da sua individualidade e capacidade produtiva e, claro, seu gosto musical, resolve colaborar com a memória e a paisagem da cidade do Rio de Janeiro. Na verdade, muito mais que uma colaboração, é um reflexo importante de cidadania e humanização através da Educação, bases fundamentais, nas quais um indivíduo se desenvolve.
Um dos principais frutos da relação Estudante e Academia é a chamada indissociabilidade – Pesquisa, Ensino e Extensão. Para muitos acadêmicos, um sonho e, para outros, horizonte. Muito se discute sobre o papel de uma instituição de ensino na vida de um aluno, ampliando a discussão e a noção acerca dessa tão sonhada integração entre os conceitos supracitados. Em uma universidade, sem sombra de dúvidas, o que se há de mais valioso é um aluno produzir um conhecimento que ultrapasse o horizonte acadêmico e reverbere este aprendizado de modo a melhorar a qualidade de vida da população à qual se insere.
Gosto de pensar nesta tríade, ou melhor, tripé, pois alia as ações e os temas curriculares ao comprometimento social. Considera, portanto, que uma faculdade não há de se restringir somente às questões da produção ou aquisição do conhecimento científico acadêmico. Há, também, que se dilatar seu universo curricular ao aproveitamento social, cultural, econômico e político. Podemos assim dizer que uma instituição com esse princípio tem, como um dos vetores de transformação da realidade a qual faz parte, a produção do conhecimento acadêmico.
Resumindo, a universidade produz o conhecimento através do Ensino, aprimora com Pesquisa e, por meio da Extensão, o difunde. O quanto mais perto desse ideal a academia estiver, mais perto de cumprir o seu papel estará. Todo esse universo institucional e o conceito de indissociabilidade supracitado me faz lembrar Guto, aquele mesmo do início do texto. Bem como esclarece a sua importância e posicionamento enquanto indivíduo acadêmico.
O jovem, como parte de conteúdo da disciplina Projeto Urbano Regional, do seu curso de Arquitetura e Urbanismo, elabora um projeto para reativar a memória sambística, ao mesmo tempo em que recupera uma área degradada no entorno do Sambódromo, dotando-a de simbolismo e significado. Aproveita o seu conteúdo acadêmico e tema curricular para entender elementos que faziam parte, de algum modo, da sua formação enquanto cidadão. Isto é uma das formas de Ensino.
Uma paisagem, uma edificação, pode revelar a historicidade de um espaço, de uma rua, de um bairro. Para identificarmos os pontos históricos que, nos dias de hoje, ainda fazem sentido à nossa paisagem urbana, existe a necessidade de pesquisa sobre fatos históricos que contribuíram para a nossa cultura, como por exemplo, a Pequena África, reduto de socialização do samba na zona portuária do Rio de Janeiro. Dessa forma, aprimora-se o Ensino, através da aquisição de novos conhecimentos. A memória e a história nos revelam aspectos e questões que, por vezes, estão adormecidas em nosso cotidiano. Isto é uma das formas de Pesquisa.
Eis aqui, a Praça dos Três Boêmios! Uma memória viva do samba na paisagem urbana carioca. Um projeto arquitetônico com ressonância em toda a área central e portuária da cidade do Rio de Janeiro. Um contato com a presença da lembrança do samba de outrora. Um ambiente proposto para a população carioca com a pretensão de sanar não somente o saudosismo do gênero musical, mas também de ser uma opção de lazer e cultura respeitando a singularidade do espaço no qual se insere, proveniente de um estudo acadêmico. O resultado e a viabilidade deste projeto é uma das formas de Extensão.
A Praça dos Três Boêmios é um destes projetos que colaboram com a causa pública. Faz bater forte a nossa vontade de fazer algo pelo nosso bairro, cidade, estado, país. Não à toa, este projeto-praça possui este nome, uma singela homenagem a três dos grandes bambas do samba: Heitor dos Prazeres, Pixinguinha e Grande Otelo. Uma forma de reavivar a memória do samba carioca, remodelar a paisagem urbana local. Um projeto contextualizado às propostas de revitalização do centro histórico da cidade do Rio de Janeiro.
Uma das inspirações para o projeto foi a historicidade do Bairro do Estácio, mais conhecido como “Berço do Samba”, por abrigar manifestações populares singulares do gênero musical, como por exemplo, a criação da primeira escola de Samba, a Deixa Falar. Com tanta história para contar, a praça ainda teria espaço para o Museu Ópera do Malandro, uma homenagem específica à boa malandragem carioca e aos seus boêmios, bem como a outros tipos populares, como o personagem Zé Carioca, por exemplo. Outro ponto considerado igualmente importante para o jovem estudante de arquitetura e urbanismo é a degradação da área que já vivenciou tantos momentos marcantes para o samba.
O resgate da história e convívio do samba de antigamente serão lembrados através de elementos arquitetônicos presentes no espaço destinado à praça e ao museu, como por exemplo, um busto de um malandro, em uma referência à classe do sambista carioca, a distribuição de quiosques e a disposição das ruelas com becos relembrando os locais de socialização da saudosa Pequena África, recanto de tradicionais sambistas do Rio de Janeiro.
Um dos principais efeitos da Praça dos Três Boêmios seria mostrar que a arquitetura respeita e valoriza o passado, através de edificações que resgatariam a memória histórica, agregando à paisagem valor cultural e arquitetônico inimaginável, contribuindo, inclusive, para a relação de pertencimento dos grupos sociais com o lugar em que vivem ou transitam diariamente ou sazonalmente.
Como geógrafa identifico que este tipo de projeto é muito importante para o estreitamento da relação do morador com o espaço e paisagem que o cercam. Uma vez que a noção de espaço é qualquer porção de superfície, a noção de lugar requer afetividade, contém simbolismo e significado. É sob este manto que está o projeto de Guto. Uma forma de reavivar a memória da sociedade através da paisagem urbana central do Rio. Requalificando a relação de pertencimento dos moradores com o espaço no qual fazem parte. Para muitos, em Geografia, o conceito de lugar pode ser considerado uma das formas mais robustas de se reconhecer a relação entre espaço e comunidade.
Muito mais que o exposto acima, o espaço vivido, em sua concretude, se revela através do grupo social que ali vive, das relações e interações com a porção de superfície ocupada. Isto é, o espaço é resultado da ação humana, da sociedade e de seu comportamento e percepção, em relação às suas diversas esferas: jurídica, política, econômica, social. Portanto, se tivermos uma sociedade desigual (se?), o espaço será desigualmente ocupado, distribuído e significado.
Ao caminharmos no entorno do Sambódromo será que reconhecemos este espaço como um lugar do samba ou o perceberemos apenas como um ambiente fechado para o consumo do Carnaval e das Histórias do Samba Carioca? Ou ainda, somente, como reduto do samba nos meses de folia, apesar de tanta memória? Talvez, reler o parágrafo acima possa indicar uma resposta ou fazer como Guto, através do aproveitamento acadêmico pensar em estudos que busquem saídas para a sociedade.
A proposta de Guto vai além de um projeto de um estudante de Arquitetura e Urbanismo, é um projeto de um cidadão. Uma reestruturação da relação de ser carioca e ser sambista, é reconhecer o centro do Rio como o melhor lugar para vivenciar as experiências desse elo.
Fonte: Rafaela Bastos
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